quarta-feira, 2 de julho de 2008

Resgatar o amor no passado

... À medida que envelheço e que a vida se vai cumprindo em mim, sinto uma necessidade crescente de conhecer melhor a história dos que me trouxeram até aqui. Aos sete anos já tinha perdido todos os meus avós, sendo que aos quatro perdi ambos os avós maternos, que partiram com apenas um mês de diferença. Não posso imaginar o que a minha mãe e tia sentiram perante tal amputação. As minhas únicas memórias, muito enevoadas, são do meu avô passear comigo pela Rua da Praça, e ser abordado por muitas pessoas que roubavam uns 5 minutos à conversa. Nessas passeios lembro-me de receber uns chocolates pequeninos que tinham desenhos de Caravelas Portuguesas, bolos de chá feitos com azeite e...um dia ...recordo-me de ter ficado estática a olhar para a montra de uma papelaria, cobiçando uma aguça verde, enquanto o meu avô conversava por ali. Quando me virei, fiquei aflita porque me apercebi que estava sózinha...nesse momento ele sai da papelaria com a aguça na mão...Hoje se eu oferecesse uma visita à Disney aos meus sobrinhos, duvido que os seus olhos brilhassem como os meus nessa tarde.
Quis o destino que a morte absurdamente o roubasse das nossas vidas quando me encontrava em sua casa a passar uma temporada, sob a forma de um aneurisma que provocou um AVC fatal. Reza a lenda que assim que vi a mãe minha chegar do Porto, rebentei de orgulho por ser a primeira a dar a novidade...o avô morreu!!... Eu não sabia o que era morrer, nunca tinha visto um morto, nunca tinha percebido que não somos deste mundo...para mim numa Vila onde nada acontecia todo o Verão, tinha subitamente detectado alguma agitação...
A minha avó não se sentindo capaz de acompanhar o amor de uma vida à última morada ficou na cama, sentindo-se cada vez mais fraca. Faleceu com um cancro galopante.
Anos mais tarde, fomos novamente destroçados perante a visão de uma casa tão amada destruída por um incêndio que, em silêncio (foi um curto circuito...) e durante um dia inteiro, se alimentou de quadros, mobilias, fotografias, colchas e pior... de aromas e memórias felizes...que não voltariam a repetir-se. Quando a minha tia regressou a casa no final do dia, foi quase projectada pelo contacto do oxigénio com a combustão. Então vieram os bombeiros, então veio à agua em milhares de litros, então vieram as machadadas no soalho, então vieram as lágrimas e os gestos que também não esqueci. Andavam dezenas de pessoas a circular pela casa, a retirar bens, a proteger o que restava, a oferecer casa, cama, roupa, dinheiro, refeições...colo.
Apercebi-me então como a minha família era estimada. O meu avô era um carpinteiro (pelos vistos talentoso, uma vez que até hoje as portas e o tecto da Igreja permanecem intactos, após terem nascido das suas mãos), era Agente de duas Seguradoras, era representante de uma empresa de Persianas, era o dinamizador de Excursões da Vila (temos muitas fotos das mais variadas excursões pelo país) e além de Agricultor era ainda Comandante dos Bombeiros.
Este fim de semana, e sendo uma das duas unicas descendentes ( a outra é a minha mana), senti coragem para remexer nos poucos pertences que sobreviveram ao incêndio, por estarem à data no quarto de costura, adega ou arrumos que se situavam no piso inferior da casa. Fui então arrebatada pela emoção ao abrir duas caixas de madeira feitas pelo meu avô para a minha avó, com divisórias apropriadas para os diversos apetrechos de costura, e estas estavam cheias de barras de renda finissima, que a minha tia reconheceu serem para aplicações em vestidos para as filhas e mais tarde ...as netas. Ainda estavam presas ao novelo de linha...pedaços de vida inacabados...uma caixa de "Saridon" cheia alfinetes. Descobri e resgatei ainda outra caixa feita para transporte de uma máquina de Petróleo utilizada nas famosas excursões para aquecer as refeições, no interior e para que não houvesse dúvidas a inscrição deste meu ascendente "Rodrigo". Por último, trouxe também um malho ou mangualde, instrumento que servia para malhar os cereais.
Hoje são peças decorativas que vão ser restauradas e perpetuadas, tal como o meu amor pelos meus avós o será.
Desculpem o post tão longo mas foi-me necessário...para atar as pontas soltas e para que um dia quiçá um filho meu saiba que tinha um bisavô grande de olhos verdes e loiro e uma bisavó doce, que fazia compotas, tranças e rendas.



2 comentários:

Avozinha disse...

Fantástico!

Sarita Catita disse...

A tua escrita é deliciosa, como as compotas da tua avó!
Beijos!